🌿 O Potencial Terapêutico de Canabinoides e Compostos Lípídicos no Tratamento do Transtorno por Uso de Cocaína
- Dr. Luís Cláudio Azevedo

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O Transtorno por Uso de Cocaína (TUC) representa um grave problema de saúde pública global, carecendo de farmacoterapias aprovadas com eficácia robusta. Pesquisas pré-clínicas e clínicas recentes têm explorado o potencial de intervenções baseadas em compostos de origem natural, como o Canabidiol (CBD), o Beta-cariofileno (BCP) e a Palmitoiletanolamida (PEA), para modular os comportamentos aditivos e os processos neurobiológicos subjacentes ao TUC.
1. Canabidiol (CBD): Um Modulador Multifacetado
O CBD, um fitocanabinoide não psicoativo com excelente perfil de segurança e tolerabilidade, tem sido investigado como um tratamento promissor para diversos transtornos por uso de substâncias.
1.1. Evidências Pré-Clínicas de Ação Anti-Cocaína
Estudos em roedores demonstraram que o CBD pode:
Reduzir o Comportamento de Busca e Consumo: O CBD reduziu a autoministração de cocaína e o ponto de ruptura em um esquema de razão progressiva em camundongos. Em ratos, o BCP (com base em um mecanismo similar ao CBD) reduziu significativamente a autoadministração de cocaína, a preferência condicionada por local (PCL) e a reinstalação da busca pela droga induzida por priming de cocaína.
Atenuar a Recaída: Um preparado transdérmico de CBD atenuou a reinstalação da busca por cocaína induzida por contexto e estresse em ratos, e esse efeito se manteve por um longo período (cerca de 5 meses) após a descontinuação do tratamento.
Prevenir a Neurotoxicidade e a Convulsão: O pré-tratamento com CBD protegeu contra convulsões induzidas por cocaína e reduziu a toxicidade e a inflamação hepática em camundongos.
Modulação da Memória de Drogas: A administração aguda de CBD potenciou a extinção da PCL induzida por cocaína e anfetamina e prejudicou a reconsolidação da PCL por cocaína.
1.2. Mecanismos de Ação Propostos
Os efeitos protetores do CBD podem estar relacionados à sua capacidade de reverter as neuroadaptações induzidas pela cocaína e metanfetamina (METH). O CBD atua em múltiplos alvos (Figura 1), o que pode explicar seu amplo potencial terapêutico:
Modulação do Sistema Dopaminérgico Mesolímbico: O CBD pode reverter o aumento da atividade do sistema de recompensa dopaminérgico mesolímbico induzido por drogas de abuso, atenuando as alterações na via dopaminérgica do circuito VTA-NAcc.
Efeitos Anti-inflamatórios e Neuroprotetores: O CBD pode prevenir a reatividade microglial e a neuroinflamação induzidas pela cocaína.
Interações com Receptores Não Canabinoides: O CBD apresenta agonismo parcial nos receptores D2 de dopamina, agonismo nos receptores 5-HT1A de serotonina, e pode modular receptores opoides mu e delta.
Vias de Sinalização Intracelular: O CBD modula vias como a mTOR/p70S6K e aumenta a sinalização MAPK-CREB e a expressão de BDNF no hipocampo.
Tabela 1. Mecanismos Hipotéticos do CBD no TUC (Resumo Pré-clínico)
(VTA: área tegmental ventral; NAcc: núcleo accumbens; Hipp: hipocampo; PFC: córtex pré-frontal; Amyg: amígdala; OR: receptores opioides; nAChR: receptores nicotínicos; PPAR: receptores ativados por proliferadores de peroxissoma).
1.3. Evidências Clínicas e Limitações
Dois ensaios clínicos randomizados e controlados (RCTs) com indivíduos com Transtorno por Uso de Cocaína (TUC) não conseguiram demonstrar a superioridade do CBD (em doses de 300 mg e 800 mg/dia) em comparação com o placebo para os desfechos primários de redução da fissura (craving) induzida por pistas de drogas ou para o aumento do tempo de recaída.
Fissura e Recaída: Não foram encontradas diferenças significativas na fissura induzida por pistas de droga ou por estresse, nem no tempo de recaída em cocaína ou no uso geral de cocaína entre os grupos CBD e placebo. O CBD foi geralmente bem tolerado, sendo a diarreia o evento adverso mais frequente.
Mecanismos Inflamatórios (Estudo Exploratório): Um subestudo desses RCTs explorou os efeitos do CBD nos marcadores inflamatórios e encontrou resultados promissores. Os participantes tratados com CBD apresentaram:
Níveis mais baixos de interleucina-6 (IL-6) e fator de crescimento endotelial vascular (VEGF-A).
Níveis mais baixos de monócitos intermediários (CD14 + CD16) e células natural killer (CD56 CD16).
Níveis mais altos de células CD25 + CD4 + T, conhecidas por suas propriedades regulatórias/imunossupressoras.
Limitações dos RCTs de TUC: Os estudos clínicos no TUC foram limitados por amostras pequenas (menor do que a meta original de N=110), alta taxa de recaída em ambos os grupos, e alta taxa de abandono (cerca de 20%), o que pode ter comprometido o poder estatístico para detectar diferenças. Além disso, a dosagem única diária pode não ter sido ideal para manter os níveis plasmáticos estáveis.
2. Beta-cariofileno (BCP): Um Aditivo Alimentar Reprogramado
O Beta-cariofileno (BCP) é um terpeno e aditivo alimentar aprovado pela FDA (GRAS - "geralmente reconhecido como seguro") presente em diversas plantas, como cravo e pimenta preta.
2.1. Ações Anti-Cocaína em Estudos Pré-Clínicos
Em modelos animais, o BCP demonstrou potencial como tratamento para o TUC:
Autoadministração e Busca pela Droga: O BCP, administrado por via intraperitoneal (i.p.) ou intragástrica (i.g.), atenuou de forma dose-dependente a autoadministração de cocaína e a reinstalação da busca pela droga induzida por priming de cocaína.
Propriedades de Recompensa: O BCP reduziu a PCL induzida por cocaína.
Ausência de Potencial de Abuso: O BCP não conseguiu manter a autoadministração em um teste de substituição de drogas e não alterou a autoadministração de alimentos.
2.2. Mecanismo de Ação Central: PPARs
Embora o BCP tenha sido inicialmente relatado como um agonista seletivo do receptor canabinoide tipo 2 (CB2R), estudos mais recentes sugerem que seu efeito anti-cocaína é mediado por receptores não-canabinoides:
Receptores PPAR-alpha e PPAR-gamma: O bloqueio farmacológico dos receptores ativados por proliferadores de peroxissoma alfa (PPAR-alpha) e gama (PPAR-gamma) reverteu a redução induzida pelo BCP na autoadministração de cocaína. A estimulação seletiva desses receptores também reduziu a autoadministração de cocaína, o que corrobora o envolvimento desses alvos.
Mecanismo Dopaminérgico: O BCP reduziu a recompensa de autoestimulação intracraniana (ICCS) mantida pela estimulação óptica de neurônios dopaminérgicos do VTA em camundongos DAT-cre, sugerindo o envolvimento de um mecanismo dopaminérgico dependente de PPAR-alpha e PPAR-gamma no sistema mesolímbico.
Receptores Não Envolvidos: O bloqueio ou deleção genética dos receptores CB1,CB2, GPR55, ou o bloqueio de receptores opióides mu (MOR) e TLR4, não alteraram a ação do BCP contra a autoadministração de cocaína.
3. Palmitoiletanolamida (PEA): O Mediador Lipídico Endógeno
A Palmitoiletanolamida (PEA) é uma N-aciletanolamina (NAE) endógena, um mediador lipídico bioativo, que faz parte do sistema endocanabinoide.
3.1. Efeitos na Adicção à Cocaína em Estudos Pré-Clínicos
Em camundongos, a PEA mostrou capacidade de modular o comportamento relacionado à cocaína:
Sensibilização Comportamental (SC) e Locomoção Condicionada (LC): A administração repetida de PEA (1 ou 10 mg/kg) bloqueou a aquisição da SC e da LC induzidas por cocaína. A administração aguda de PEA reduziu ou eliminou a expressão da SC e da LC.
Preferência Condicionada por Lugar (PCL): A administração repetida de PEA não alterou a aquisição da PCL induzida por cocaína. No entanto, a administração aguda de PEA foi capaz de abolir a expressão da PCL induzida por cocaína.
3.2. Mecanismo de Ação Principal: PPAR-alpha
O mecanismo de ação da PEA envolve múltiplos alvos:
Receptor PPAR alpha: A PEA atua como ligante para o receptor nuclear PPAR alpha (Receptor Ativado por Proliferadores de Peroxissoma Alfa). A ativação do PPAR alpha é um mecanismo fundamental para seus efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores.
Mecanismo Indireto no Sistema Canabinoide: Embora a PEA não se ligue diretamente aos receptores canabinoides clássicos CB1R ou CB2R, ela pode modular indiretamente a atividade do sistema endocanabinoide, inibindo a degradação de outras NAE’s (como a anandamida) e potencializando sua ação.
4. Conclusão e Perspectivas Futuras
Os achados pré-clínicos fornecem um forte suporte para a investigação do CBD, do Beta-cariofileno e da Palmitoiletanolamida como potenciais tratamentos para o Transtorno por Uso de Cocaína.
A eficácia promissora dos estudos pré-clínicos, especialmente a capacidade de atenuar a busca e recaída por cocaína, ressalta a necessidade de mais pesquisas. É crucial que futuros RCTs superem as limitações metodológicas (tamanho da amostra, dosagem, aderência) e incluam a avaliação dos mecanismos subjacentes, como os marcadores inflamatórios e vias de sinalização, para validar o potencial terapêutico desses compostos em humanos com TUC.
5. Referências Bibliográficas
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ZAMBRANA-INFANTES, E. et al. A palmitoiletanolamida atenua a sensibilização comportamental induzida pela cocaína e a preferência condicionada por local em camundongos. Pharmacol Biochem Behav, 2018. (Tradução do título).
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MONGEAU-PÉRUSSE, V. et al. Cannabidiol as a treatment for craving and relapse in individuals with cocaine use disorder: a randomized placebo-controlled trial. Addiction, 116, 2431-2442, 2021.
Dr. Luís Cláudio de Azevedo Silva é Médico especialista em Medicina Preventiva, com Pós-graduação em Psiquiatria e Cerificação em Medicina Endocanabinóide




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