O Potencial Terapêutico do Canabidiol (CBD) na Esquizofrenia: Revisão Sistemática dos Mecanismos Farmacológicos e Evidências ClínicasResumo
- Dr. Luís Cláudio Azevedo

- 29 de out.
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A esquizofrenia, um transtorno neuropsiquiátrico crônico e complexo, impõe um ônus significativo devido à resposta incompleta e aos efeitos adversos dos antipsicóticos de primeira linha. O canabidiol (CBD), um fitocanabinoide não psicotrópico, emergiu como um candidato terapêutico promissor, atuando primariamente através da modulação do sistema endocanabinoide (SEC). Esta análise aprofunda as evidências clínicas e os mecanismos farmacológicos que sustentam o potencial antipsicótico do CBD, destacando a sua ação na via da anandamida e o seu perfil de segurança superior, crucial para o manejo de pacientes refratários e para a redução da morbidade associada ao tratamento.
Palavras-chave: Canabidiol; Esquizofrenia; Anandamida; Sistema Endocanabinoide; Antipsicótico; Farmacologia.
1. Introdução
A esquizofrenia é caracterizada por um espectro de sintomas que incluem manifestações positivas (alucinações, delírios), negativas (embotamento afetivo, anedonia) e déficits cognitivos. A farmacoterapia convencional, predominantemente centrada no antagonismo dos receptores dopaminérgicos , apesar de eficaz nos sintomas positivos, é frequentemente limitada pela baixa tolerabilidade, incluindo disfunções motoras (sintomas extrapiramidais - EPS), hiperprolactinemia e ganho de peso metabólico.
A divergência entre o uso recreativo de Cannabis (rico em Δ9-tetraidrocanabinol - THC), que está associado a um aumento dose-dependente do risco de psicose, particularmente em indivíduos com alta suscetibilidade genética (elevado Escore de Risco Poligênico para Esquizofrenia - PRS), e o potencial antipsicótico do CBD, um de seus constituintes, estabelece um paradoxo neurofarmacológico que exige investigação.
O presente artigo visa compilar e analisar o conhecimento técnico-científico sobre o CBD no tratamento da esquizofrenia, focando em:
Elucidar seu mecanismo de ação distintivo, em particular a modulação da anandamida.
Avaliar as evidências de eficácia em ensaios clínicos controlados.
Contrastar seu perfil de segurança com o dos antipsicóticos tradicionais.
2. Mecanismos Farmacológicos Antipsicóticos do CBD
O CBD exibe uma farmacocinética e um perfil de ligação a receptores que o distingue do THC, conferindo-lhe a ausência de efeitos psicoativos e pró-psicóticos. Sua atividade antipsicótica não está ligada à afinidade primária por receptores canabinoides (CB1 e CB2), mas sim a uma interação complexa e multialvo, notadamente no SEC e em vias serotonérgicas.
2.1. Modulação da Sinalização da Anandamida
O principal mecanismo de interesse clínico reside na capacidade do CBD de modular a homeostasia do endocanabinoide N-araquidonoiletanolamida (AEA, ou anandamida).
Inibição Enzimática (FAAH): O CBD atua como um inibidor moderado da enzima hidrolase de amida de ácido graxo (FAAH), a principal enzima responsável pela hidrólise e desativação da AEA nos terminais nervosos. O CBD inibe a FAAH com uma concentração efetiva mediana (IC50) de aproximadamente 8.6 ± 0.2 µM .
Relevância Translacional: A inibição da FAAH pela administração de CBD resulta em um aumento significativo nas concentrações séricas e potencialmente centrais de AEA. Este aumento da sinalização intrínseca da anandamida demonstrou-se inversamente correlacionado com a intensidade dos sintomas psicóticos.
2.2. Outras Interações Neurofarmacológicas
O CBD interage com outros alvos moleculares relevantes para a esquizofrenia, incluindo a atuação como agonista parcial do receptor de serotonina 5-HT1A e interações com receptores de Potencial Receptor Transitório Vaniloide-1 (TRPV1). A ausência de afinidade primária pelos receptores de dopamina elimina os efeitos adversos tipicamente associados ao bloqueio D2.
3. Evidências Clínicas de Eficácia e Segurança
Os dados clínicos são provenientes de ensaios de fase II, exploratórios, que investigam o CBD como monoterapia ou terapia adjuvante em pacientes com esquizofrenia aguda ou crônica.
3.1. Ensaios Clínicos Controlados
Um estudo pivotal, duplo-cego e randomizado comparou o CBD (800 mg/dia) com a amisulprida em pacientes com esquizofrenia aguda. Os resultados indicaram uma eficácia antipsicótica similar na redução dos sintomas, conforme a Escala de Síndromes Positivas e Negativas (PANSS).
Além disso, um ensaio clínico multicêntrico e randomizado, com o CBD como terapia adjuvante (1000 mg/dia), demonstrou uma redução nos sintomas positivos em comparação com o placebo, reforçando seu papel no manejo das manifestações psicóticas.
3.2. Perfil de Tolerabilidade e Segurança (Superioridade Clínica)
A vantagem mais pronunciada do CBD é o seu perfil de segurança marcadamente superior em comparação com a amisulprida, conforme detalhado na Tabela 1.
Tabela 1: Comparativo de Eficácia e Tolerabilidade: CBD vs. Amisulprida (Ensaio Clínico Agudo)
Fonte: Adaptado de Leweke et al. (2012).
4. Implicações da Interação Gene-Ambiente: Risco Poligênico e Uso de Canabinoides
A esquizofrenia possui forte componente hereditário. A análise de coortes populacionais, utilizando o Escore de Risco Poligênico para Esquizofrenia (PRS-SCZ), revela uma interação crucial entre a predisposição genética e o uso de Cannabis (alto teor de THC).
4.1. Relação Dose-Dependente e Risco
Existe uma associação forte e dose-dependente entre a frequência de uso de Cannabis e o aumento na Razão de Chances Ajustada (AOR) para o relato de experiências psicóticas (Tabela 2).
Tabela 2: Relação Dose-Dependente entre Uso de Cannabis e Experiências Psicóticas
Fonte: Adaptado de Wainberg et al. (2021).
4.2. Modulação Genética do Risco
O PRS-SCZ atua como um forte modulador dessa associação. Indivíduos com alto PRS-SCZ (quintil superior) demonstram uma vulnerabilidade significativamente maior a experiências psicóticas induzidas por Cannabis, como os Delírios de Referência (Tabela 3).
Tabela 3: Modulação do Risco Psicótico pelo Escore de Risco Poligênico (PRS-SCZ) em Usuários de Cannabis
Fonte: Adaptado de Wainberg et al. (2021). AOR = Razão de Chances Ajustada para o uso de Cannabis em algum momento da vida.
A atuação antipsicótica do CBD pode ser vista como uma estratégia para "contrabalancear" a desregulação do SEC exacerbada pela exposição a produtos com alto teor de THC, oferecendo uma via de tratamento mais segura para indivíduos já geneticamente predispostos.
5. Desafios Regulatórios e Implicações Éticas na Psiquiatria do Canabidiol (CBD)
A translação clínica do CBD é complexa devido a barreiras regulatórias e dilemas éticos:
Validação de Fase III e Padronização: É imprescindível a conclusão de ensaios de Fase III em larga escala, seguindo rigorosos padrões regulatórios, para confirmar a eficácia e segurança. Além disso, a padronização das formulações de CBD (grau farmacêutico) é crítica para garantir a qualidade e a dosagem.
Risco de Confusão e Autotratamento: A distinção ética entre o CBD medicinal de prescrição e os produtos de Cannabis recreativa é vital para evitar o autotratamento, que pode ser deletério em uma população vulnerável à psicose.
Monitoramento de Interações Medicamentosas: O CBD, como inibidor de enzimas do citocromo P450 (CYP3A4 e CYP2C19), pode exigir monitoramento terapêutico de drogas (TDM) para evitar interações com antipsicóticos concomitantes.
6. Conclusão Final
O CBD representa uma fronteira terapêutica promissora no tratamento da esquizofrenia, ancorada em um mecanismo de ação inovador via modulação da anandamida e com um perfil de segurança superior. A demonstração de eficácia antipsicótica comparável, em contraste com a melhor tolerabilidade, o posiciona como um candidato ideal para terapia adjuvante ou alternativa em pacientes intolerantes ou refratários. A integração do conhecimento sobre o risco genético da esquizofrenia com o potencial terapêutico do CBD fortalece a base para o desenvolvimento de estratégias de redução de danos e medicina de precisão, protegendo aqueles com maior vulnerabilidade neuropsiquiátrica.
7. Referências Bibliográficas
Leweke, F. M., Piomelli, D., Pahlisch, F., Muhl, D., Gerth, C. W., Hoyer, C., Klosterkötter, J., Hellmich, M., & Koethe, D. (2012). Cannabidiol enhances anandamide signaling and alleviates psychotic symptoms of schizophrenia. Translational Psychiatry, 2(3), e94.
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McGuire, P., Robson, R., Barrett, B., Power, P., Jauhar, S., Di Forti, M., Murray, R. M., & Leweke, F. M. (2018). Cannabidiol (CBD) as an Adjunctive Therapy in Schizophrenia: A Multicenter Randomized Controlled Trial. The American Journal of Psychiatry, 175(3), 225-231.
Wainberg, M., Jacobs, G. R., Di Forti, M., Tripathy, S. J. (2021). Cannabis, schizophrenia genetic risk, and psychotic experiences: a cross-sectional study of 109,308 participants from the UK Biobank. Translational Psychiatry, 11(1), 218.
Long, L. E., Cheng, Y. H., Liu, K. W., & Wong, E. V. (2012). Cannabidiol administered during peri-adolescence prevents behavioral abnormalities in an animal model of schizophrenia. Schizophrenia Research, 139(1-3), 209-214.
Dr. Luís Cláudio de Azevedo Silva é Médico especialista em Medicina Preventiva, com Pós-graduação em Psiquiatria e Cerificação em Medicina Endocanabinóide




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